sábado, 25 de dezembro de 2010

nochebuena

Quando eu era pequena minha mãe deixava a mesa de casa montada com comidas natalinas durante os dias que antecediam o natal. Era uma mesa linda com castanhas, nozes inteiras a serem abertas, bolos de frutas e outras delícias da época. Eu passava dias rodeando a mesa, esperando o momento em que os bolos seriam cortados e o ataque seria liberado. Só que toda vez era uma grande decepção, a mesa era tão linda, tão tão linda, que eu esquecia que nenhum daqueles doces era de chocolate. Com os salgados era a mesma coisa, aquele peru maravilhoso, abacaxis rodeando travessas, farofas encrementadas e imponente cuzcuz de camarão. Dias de ansiedade, mas na hora agá, eu sempre achava o peru sem graça, a farofa com frutas demais, o tender muito esquisito e o cuzcuz nem se fala. Só me restavam as massas e o arroz branco. Eu achava engraçado os adultos se deliciando com todas aquelas comidas coloridas e ruins. A estrela do natal, na verdade, era dois pratos, de longe, os menos lindos da mesa: a rabanada, que minha avó Dorina fazia em minha homenagem, e a cumbuca gigante de cerejas pretas da casa da minha avó Flora.

Hoje eu gosto de todas as comidas esquisitas de natal que meu paladar infantil não sabia apreciar. Só que este ano voltei da Argentina com alguma intoxicação alimentar que me fez passar quase toda a ceia olhando as pessoas comerem. E assistindo as crianças correndo, os homens de whisquie na mão, as mulheres de champanhe em punho andando pela casa iluminada. Parece que os três dias que passei a água de coco deixaram meu corpo mais leve e minha sensibilidade um pouco a flor da pele demais.

O natal e todos seus significados me emociona e não poder tomar nenhum gole de champanhe deixou isso ainda mais claro. Dos tempos que eu fazia rondas em volta da mesa natalina da casa dos meus pais até noite de ontem, parece que não existiu mais que um segundo. Que coisa esquista o tempo. Apenas o segundo de agora, quando o todo o resto é memória e expectativa.

Que cada segundo deste ano recém nascido na madrugada de hoje receba toda a nossa atenção e gratidão. Feliz natal a todos, que vocês estejam na companhia de quem amam ou com essas pessoas no pensamento, e que tenham o coração leve e o estômago melhor que o meu para poderem se deliciar sem culpa e sem pressa neste fim de ano.

um beijo e obrigada pela companhia,


Ontem-foto tirada pela minha prima Aninha no momento da peçinha de natal que fazemos todos os anos. Em cena: da direita para a esquerda, eu, Nando no piano, Pedro, Laura no chão, Ana Beatriz, Davi e Caio. Grande elenco e a casa iluminada antes da chegada do papai noel.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Patagonia

ave com brioche no bico


cafe da manha, cartao postal


saguao do hotel " em algum lugar do passado"


uma imagem


mae e filhas


um voo cancelado
outro voo atrasado
trafico aereo
ressaca no aeroporto
irritacao no aeroporto
budismo no aeroporto

uma dúzia de mini alfajores
meia dúzia de sanduiches ressecados
sucos de caixinha
conexoes portenhas

da congestao paulista
para o calor de buenos aires
ao frio de bariloche

uma mala com roupas erradas
uma pilha de saias curtas
para o vento glacial

uma cama com travesseiros de ganso
suores noturnos
e as duas montanhas de picos nevados

uma sobrinha com dores no ouvido
um teclado que nao obedece aos comandos de acento
flores amarelas
piscinas aquecidas
fondue, papeis de parede
horizontes
paisagens de poucas quinas
céu azul turquesa
tom sobre tom

e algum esquecimento


bons ares para 2011!

sábado, 4 de dezembro de 2010

Jerson e Jair

Por que com ventilador ligado, parece que chove no quarto. E eu que inventei de derrubar dois armários e fazer um closet. Justamente quando havia móveis suficientes na casa para abafar o barulho. E aí fiquei dias com os dois olhos vermelhos por conta do pó da cerejeira. Depois passei mais um dia achando que o cheiro de cola fazia algum efeito no meu corpo. E o marceneiro sumiu, ele e o irmão dele, sumiram e me deixaram com todas as roupas desalojadas. O Jerson e o Jair, dois irmãos marceneiros que com esses nomes poderiam até formar uma dupla sertaneja. Gerson e Jair fumam, tomam café frio e adoram meu gato. Só que agora sumiram. Me deixaram aqui, no calor, com meu ventilador pré jurássico e sem conseguir achar uma peça de roupa que preste para poder sair de casa. Nem um par de meias eu consigo formar. Bom, quem é que precisa de meias nesta temperatura?

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

o barulho


(foto de Murat-Suyur)

O começo dessa história parece um conto do Cortázar, ou algo parecido. Um dia ouvimos um barulho, que vinha do banheiro do meio. O apartamento tinha sido infiltrado pela água vazada da reforma do 62 e foram dias de água pingando, do mofo crescendo nas bordas de gesso, os tacos inflando, a umidade e agora aquele barulho.

Só podia vir da luz. Então desligamos a luz, e imaginamos que uma vez desligada e depois que a água secasse, o apito cessaria. Dias se passaram e o apito continuava.

Então passamos a observá-lo afim de notar alguma lógica em sua existência. Talvez ele diminuísse a noite ou parasse na madrugada? Mas o apito continuava, constante e igualmente irritante a cada minuto de nossa vida na casa. Certa manhã passamos a ignorá-lo, tiramos as lâmpadas, cortamos o dedo, fechamos a porta e abafamos o som com toalhas. Mas depois de alguns dias, ou bem nossos ouvidos estavam mais apurados ou o apito havia aumentado. Ligamos para a proprietária do 62 e exigimos um eletricista que resolvesse o nosso problema, que afinal era dela também. E veio um homem, que sujou todo apartamento com pegadas de poeira, tirou nosso lustre, fez uma cara feia e disse: "Esse barulho não vem daqui não.", "Como não, então vem da onde?!", "Sei não Senhora".

Mais alguns dias nasceram e morreram com o apito em nossas vidas. Algumas madrugadas cheguei acordar em vigília. Levantava da cama e ia checar o apito, aflita com a possibilidade de que ele desaparecesse sem a nossa ciência.

Devemos ter convivido com esse zumbido durante um mês. Então veio um especialista, o eletricista chefe. Desligou a energia do apartamento, tirou o lustre, encarou os fios: "Não é barulho de eletricidade não senhora.", "Mas é da onde?", "Sei não Senhora."

Foi nessa hora que surgiu a teoria de que o som, vinha de fora. Ou do corredor. Aí passamos a colocar os ouvidos na janela e em outros cantos da casa. E quanto mais procurávamos, mais o barulho parecia se safar.

Um dia eu disse:
"Chega desse cabelo. Pega a tesoura que eu vou cortar."
A resposta veio em alguns segundos.
"Achei!"
"O quê? a tesoura? "
"O barulho."
"Onde? onde ele tá?"
"Na gaveta, vem de dentro dessa coisa estranha."


Era o meu antigo aparelho de depilação. A água havia infiltrado os armários e a bateria do aparelho apitava como um navio distante dentro da gaveta.

Eu então desconectei as baterias que imediatamente fizeram o barulho desaparecer.

"Era isso?"
"Era."
"Que mais estúpida."
"Pois é, que vergonha."
"Bom, se perguntarem a gente diz que o barulho simplesmente parou."
"Combinado."
"Não vai me desmentir hem...e contar do meu aparelho de depilação."
"Não, que isso."


Mas eu não resisto ao relato. Lembrei daquelas histórias que a gente ouve com cinco ou seis anos de idade e sempre tem uma moral no fim. Depois a gente fica grande e pergunta "E a moral da história?". "Que moral?"

Pois essa tem: Às vezes o barulho vem de dentro.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

última semana

"mulheres que bebem vodka"

terça, quarta e quinta

CCBB- 19:30
R$ 15,00 e 7,00

Maria Manoella
Martha Nowill
Patricia Gasppar
Regina França
&
Selma Egrei

dir. Lígia Cortez
fotos de Edson Kumasaka






sábado, 30 de outubro de 2010

a mulher de trinta anos

Com essa idade já tenho um bom material para algumas retrospectivas. Aí vai a primeira:

primeira classe


primeiro papel masculino

primeira foto queima filme

primeira comunhão

primeira tigresa

primeira bailarina

primórdios

a gangue

bernardas


amigas, queridas, entediadas

amor

irmãs

as fedidas mais cheirosas do Brasil

primas

irmã e vó


edukator


brutal

mulheres da vodka

foto de revista

meninas da loja


e os olhos



Hoje é meu aniversário. Há exatos vinte e nove anos e trezentos e sessenta e quatro dias atrás minha mãe resolveu fazer uma faxina na casa e eu fiz uma volta de trezentos e sessenta graus dentro da barriga dela. E foi assim que eu dei as caras por aqui, numa cesariana de última hora, sentada com a bunda onde supostamente a cabeça deveria estar. Já cortei um bolo hoje, mas não fiz nenhum pedido, porque isso eu faço todo dia. Hoje eu só agradeci. É claro que eu tenho problemas, frustrações, perengues, assim como quase todo mundo que está vivo e mora em São Paulo, pelo menos uma vez por dia acho a vida infernal. Mas isso não me impede de dizer que eu adoro tudo isso aqui, eu gosto desta condição, de estar viva, do dia de hoje, das possibilidades de amanhã e até da náusea ou saudades que sinto quando eu olho para trás. Eu gosto de datas como natal, aniversário, o que que eu posso fazer, apesar da braveza escorpiana e da selvageria que é a vida, eu sou uma eterna romântica, otimista, boa moça, ainda que as coisas estejam no seu pior estado, eu acho que depois que elas pioram, sempre vão melhorar. Eu sei, parece discurso de miss e não é lá muito charmoso, mas não estou nem aí para o retorno de saturno, pro inferno astral, pros cabelos brancos ou a balzaquice. Eu quero mais é me divertir e que os outros se divirtam também.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

o embate

Esta semana estreio mais uma peça. Meu amigo Caco Galhardo, diante de meu convite para a estreia da terceira peça do ano, perguntou se eu estava abrindo uma pastelaria de peças. Não, retruquei na hora, não tem franquia, nem pastelaria, faço todas com igual afinco, é que teatro é assim mesmo, quando a maré está baixa, é uma seca total, e quando enche, todos os peixes vêm de uma vez só. Mas voltando ao "Rancor", minha personagem é uma jornalista, e por isso andei por algumas redações e consegui um convite para o debate no último domingo por que achei que seria um bom laboratório. De fato foi. Um lugar surreal, onde, apesar de todos os artificialismos, regras, imposições e interesses, me senti no meio de uma ágora grega, em pleno debate democrático. Quanta fúria, bagunça, ímpetos,controvérsias e excesso de opinião.

Os candidatos, que já se mostravam cansados na tv, pessoalmente pareciam mais cansados ainda. Nos intervalos seus assessores assemelhavam-se a treinadores de boxe colocando protetores de dentes e jogando água e auto-estima em cima de seus pupilos. Mas o mais interessante era ver a reação do outro candidato enquanto ouvia a resposta do seu adversário. Sim, por que na tv não tem contra plano em debate, mas pessoalmente é interessante ver um presidenciável ouvindo secamente seu oponente e matutando novas réplicas durante o discurso alheio. E a platéia! Quanto ruído, quantos blocos de anotacão, cliques de câmera, gunhidos, risos e onomatopéias soltas no ar; um capitulo a parte, sessenta segundos por minuto conectado ao twitter. Intercalava momentos de alta tensão com outros de extrema falta de educação. Kennedy Alencar, o mediador, pedia silêncio, mas de nada adiantava, o público não se continha. E eu não sabia ao certo como me portar. Antes de sair de casa estava com um vestido alegre, verde gritante. Já na frente do espelho do elevador, lembrei que não poderia ir com ele, imaginei uma platéia de homens e mulheres em ternos pretos e blazeres azuis marinhos. Me vi no meio deles, de verde limão. Voltei para o armário. Uma camisa vermelha. Não. Uma vestido azul. Não. Qual cor seria mais imparcial que o preto? E foi assim que me vesti, de negro, acompanhada da minha amiga Bel Coelho, do outro lado o governador, na frente de um senador e atrás de uma boa dúzia de políticos que costumo ver diariamente nas páginas do jornal. Eu, não mais atriz do que muitos que ali estavam, um peixe fora da água, a paisana, tentando me comportar da forma mais natural possível, segurando uma vontade gigante de gritar como se grita num campo de futebol.

Passei o tempo todo boquiaberta com o jogo, admirando algumas falas, me entediando com outras e torcendo. Para quem, não vem ao caso. O fato é que política é um negócio emocionante, um negócio feio, bonito também, e é só para quem tem muita vontade e sangue frio.

E eu, que costumo chorar só de ouvir os primeiros acordes do hino nacional, que me emociono quando alguém pronuncia a palavra pátria na minha frente, nunca contive tanta expectativa, espanto e riso diante do futuro do meu país.

domingo, 10 de outubro de 2010

filmar as coisas lindas
de dentro da minha cabeça
e pele

colocar a grande angular
na entrada do músculo
captando imagens
do registro cardíaco
quando sonhei
com toda aquela parafernália
amor
e ser a mais bonita da festa

gravar e assistir
sempre que as outras
horas pálidas
ficarem insuportáveis

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

esta semana



uma ingenuidade: achar que a tinta esmalte vermelha ia aderir à pia branca do banheiro do meio.

uma gafe: dizer em alto e suficiente som a senha do meu cartão para a moça do caixa.

uma preguiça: descer três vezes a Consolação na hora do rush.

uma alegria: descer três vezes a Consolação na hora do rush para chegar no teatro.

uma esperteza: ir pela Angélica.

uma burrice: esquecer de ir pela Angélica.

um santo: dois, São Cosme e São Damião.

uma refeição perfeita: kir royal, hamburguer, kir royal

uma anti-refeição: engulir um club social sabor cebola entre um compromisso e outro.

uma novidade: chuvas fartas

outra novidade: Micaella está falando.

um cheiro: de gás.

um perigo: o gás vazando enquanto eu dormia.

um remake: o debate eleitoral.

uma desilusão democrática: atrás da outra.

uma saudade:

quarta-feira, 22 de setembro de 2010






Percebo que estou cansada depois de passar dez minutos na frente da televisão assistindo ao leilão "as pérolas do Nelore" sem conseguir arrumar forças para mudar o canal. Nunca achei que fosse sucumbir ao clichê, mas acabo de aderir àquela ala de pessoas ocupadas que vivem correndo de um lado para o outro, chegam sempre quinze minutos atrasadas nos compromissos e adoram dizer que o tempo, é artigo de luxo.

Eu poderia justificar minha recente ausência neste espaço virtual fazendo-me valer de mais um clichê literário, o da falta de inspiração. Mas hoje o Niltinho me leu um trecho do Schopenhauer no ensaio que acabou me saindo uma desculpa melhor. Em resumo o texto dizia que aquele que lê, o tempo todo, não dá espaço para o cérebro pensar por conta própria, vive ininterruptamente as ideias alheias, sem poder criar e experimentar as próprias. Que assim como o corpo padece pelo excesso de alimento, o espírito também padece com o excesso de leitura, como uma mola, que depois de receber peso durante tanto tempo, perde a própria elasticidade. Até hoje a melhor desculpa que eu tinha arranjado para a culpa que carrego de não ler tanto quanto eu acho que deveria, era um entrevista dada pelo Bob Dylan. Ele estava na grande biblioteca de um amigo quando pensou: bom, se eu for ler tudo isso aqui, nunca terei tempo de viver.

Então essa é a desculpa, e me parece bem legítima, para meu desleixo e falta de dedicação por aqui: quando a gente não tem o que dizer, ou ao contrário, quando há muito a ser dito mas não se sabe exatamente como, nem por onde começar, melhor mesmo é ficar quieto e não correr o risco de abarrotar os olhos e espíritos alheios com ideias confusas e mal traçadas. Desculpem, parece que me escapou mais um porção de clichês. Outro clichê dos clichês, aliás, pedir desculpa pelo inevitável uso de um clichê.

Acho que é melhor mesmo e me ater ao convite. As mulheres acima são "Mulheres Que Bebem Vodka". Nós estamos em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil, às terças, quartas e quintas, 19:30. Este projeto é fruto de uma parceria minha com a diretora, Lígia Cortez, e é claro, com muitos outros talentos.
É um prazer, uma honra e uma loucura dividir a cena com essas mulheres.



MULHERES QUE BEBEM VODKA – Texto – Victor Hugo Ráscon Banda. Direção – Lígia Cortez. Elenco – Maria Manoella, Martha Nowill, Patrícia Gasppar, Regina França, Selma Egrei e Gina Monge. Tradução – Hugo Villavicenzio. Assistência de Direção – Joana Dória de Almeida. Cenografia – Ulisses Cohn. Figurinos e Visagem – Fábio Namatame. Trilha Sonora – Daniel Maia. Iluminação – Wagner Freire. Fotos e Vídeo – Edson Kumasaka. Idealização – Martha Nowill e Lígia Cortez. Idealização – Mil Folhas Produções Artísticas. Realização – Centro Cultural Banco do Brasil. Direção de Produção – Norma-Lyds. Assistência de Produção – Ana Barros. Duração – 70 minutos. Espetáculo recomendável para maiores de 14 anos. Temporada – 01 de setembro a 11 de novembro. De terça a quinta-feira, às 19h30. Ingressos – R$ 15,00 (inteira) e R$ 7,00 (meia-entrada) para estudantes, idosos e professores.

Durante a temporada alunos de artes cênicas terão 5 ingressos gratuitos por sessão, que devem ser retirados com uma hora de antecedência na bilheteria do teatro mediante comprovação de matrícula no curso.


CENTRO CULTURAL BANCO DO BRASIL – Rua Álvares Penteado, 112 – Centro. Próximo às estações Sé e São Bento do Metrô. Informações (11) 3113-3651/ 3113-3652. Acesso e facilidades para pessoas com deficiência física// Ar-condicionado // Loja // Café Cafezal. Capacidade – 125 lugares. www.bb.com.br/cultura e www.twitter.com/ccbb_sp.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Dorina

Era uma manhã de domingo e eu devia estar choramingando por alguma bobagem ocorrida na madrugada anterior. Eu abro o jornal e minha avó é capa da revista da folha. Não que isso não fosse familiar para mim, que passei a infância e adolescência vendo ela trabalhar, viajar, aparecendo em noticiários, recebendo homenagens. Mas nesta ressaca de domingo do ano de 2009 a coisa me pegou de surpresa. "Meu Deus, é minha avó, aquela velha cega que tocava órgão para os netos enquanto a gente trocava a cor das lãs de seus tapetes. É minha avó e mudou o mundo para melhor, com suas unhas, dentes e dedicação." Contraditóriamente a este ímpeto revolucionário, minha avó sempre gostou de usar a palavra resignação. Ela dizia que muitas pessoas já a haviam criticado por conta disso, mas ela explicava , mais ou menos assim: quando você se resigna, não quer dizer que você desistiu, mas é importante aceitar, para depois poder mudar. "Aquele que sabe aceitar se torna um fortaleza, ninguém o vence."

E assim minha avó ia, intercalando a força de um furacão com a paciência de um agricultor. Acho que foi só naquele domingo que eu de fato pude enxergar a grandeza de sua existência. Na segunda-feira liguei para ela: "Vó, e você nunca se deprimiu? Quando ficou cega, não ficou desesperada?", "Olha Martha, fiquei triste sim, mas deprimida nunca. Eu tenho uma mola em baixo de mim, quando algo me puxa para baixo, eu reajo para cima." A frase me soou como um sermão, já que eu vivia choramingando no juizado das pequenas causas da minha vida. Pois é, depois disso, nunca mais me abati por bobagens. Ou pelo menos tento.

Desde esse dia passei a fazer entrevistas com Dorina, "que vem do ouro", e acho que peguei seus últimos meses de memória plena. Percebi que a nova geração não conhecia seu trabalho e sua história, e contei a ela que queria fazer um filme sobre sua vida, e que gostaria de interpretar o seu papel. Ela ficou feliz, quis ajudar, opinar, e durante um tempo nos ocupamos disso. "E você acha que alguém realmente vai querer ver este filme?", ela perguntava. "Não sei vovó, mas eu quero fazer."

Sábado fui no hospital visitá-la e já era de noite. Fiquei curvada na cama, com meus ouvidos atentos em sua boca.

"Nossa senhora veio aqui. Duas vezes."
"Jura vovó? e o que ela te disse?"
"das dores."
"não entendi."
"Nossa senhora das dores."
"e o que foi que ela te disse?"
"tá muito quente, desabotoa a camisa?"
"o que foi que Nossa senhora te disse, vovó? eu quero saber."


Silêncio.

"Você quer falar comigo sobre alguma coisa? sobre o quê?"
"Bobagens."
"O quê?"
"quero falar sobre bobagens."
"tá bom vovó, mas você sabe que sou eu que tô aqui, né? Sua neta, Martha."
"Eu tô em paz, filha."


Tudo isso foi dito entre sussurros quase inaudíveis e o carinho constante que sua mão enfaixada me fazia na bochecha. Hoje seu velório parecia a arca de noé. Jovens, velhos, cegos, videntes, banqueiros, artistas, senhoras da sociedade, políticos, voluntários, estilistas, escritores, cães guia e todo tipo de gente, de todo tipo lugar. Ela recebeu 74 coroas de flores que não couberam na fundação e deram a volta no quarteirão de seu túmulo no cemitério da consolação. Um mar de flores. Arranjos assinados pelos mais diversos remetentes: da associação escandinava de São Paulo, ao governador, o presidente e sua mulher; passando pelo cartunista que a desenhou, aos funcionários das ongs que ajudou; das associações das mulheres, à associação dos tabeliões; das mais diversas familias amigas e empresas que você pode imaginar; das paróquias aos bancários, das pequenas editoras às grandes emissoras, das farmácias aos hospitais, de todos os tipos de trabalhadores, artistas e grupos que existem no Brasil. Por que minha avó era assim, amiga de muita gente, dos mais necessitados aos mais poderosos, gostava de todos com igual respeito e entusiasmo. E nunca fez nada sozinha, sempre soube incendiar os outros com suas ideias. Sempre soube pedir ajuda.

E eu estava lá, muito bem vestida, que é outra coisa que minha avó me ensinou: a elegância. Quem conhece dona Dorina sabe o quão vaidosa ela era. Sabia de cor e salteado a posição de cada centímetro de roupa de seu armário. Minha mãe costumava ir com ela para ajudar nas compras. Ela deixava as vendedoras loucas, sempre descobria os defeitos das roupas pelo tato, melhor do que qualquer um que estivesse a examinar a peça com os olhos. Ela também sempre teve uma opinião diferenciada quando assistia minhas peças, nada passava desapercebido pelos seus ouvidos. Você podia jurar que ela estava enxergando quando ensinava os caminhos para os taxistas ou reclamava dos meus pés no sofá. Minha avó não podia ver ninguém excluído, queria que a festa fosse para todos. E foi por essa inclusão dos deficientes no mercado de trabalho, na vida social e em todos os outros setores da sociedade que ela batalhou. Dia após dia.

Quando penso nela, tenho vontade de rir, por que ela sempre foi bem humorada, é dona de pérolas como "Quem não sabe obedecer não sabe mandar." ou "Para descansar você tem a eternidade.". E depois de rir sempre me emociono com o prazer que ela tinha de viver, de fazer as coisas. Com sua alegria e gula pela vida. Com sua infinita generosidade, bondade, e como tudo isso era espontâneo, verdadeiro, coerente e cada dia mais raro de ser ver. E depois me sinto forte, por que lembro que um pouco disso tudo também corre em mim. E daí já saio correndo, para poder ter tempo de fazer jus ao nome que carrego.

um beijo vovó,
nesta terça estreio mais uma vez no teatro e farei a peça com o pensamento em você
te amo com eterna gratidão
e saudades
Martha

"Quando visitei o Itamaraty pela primeira vez, um servente muito amável me disse: "Minha senhora, eu acendi todas as luzes, porque o salão fica tão bonito com todas as luzes acesas! Quem sabe a senhora também não sente a beleza deste salão?" Em vez de ficar triste por não ver, eu senti a beleza do salão.

E ele tinha razão. Foi a generosidade com que ele procurou me dar uma ideia da beleza do salão que me tocou profundamente."

Dorina Nowill

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

ali no canto
à esquerda
na fileira de baixo

a única que encara a câmera

veste uniforme sujo
o joelho segura o cotovelo
que segura a mão
que gentilmente escora a cara

cadarços esparramados
excedendo o pequeno espaço
invadindo a área do colega da esquerda
da turma do primeiro B
do ano de mil novecentos e oitenta e seis

cabelos indecisos
entre ondas
e retidão

sou eu
de tiara cor-de-rosa
e um prazer velado

em ser fotografada

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

nem um tango argentino

Dr.-vai ter que operar.

Martha chora. Odeia mexer nos dentes.

-Tem né? não tem mais jeito mesmo....

Dr.-Podemos marcar na terça?

-Não dá pra ser agora? eu vou estreiar daqui uns dias, não posso tá inchada.

Dr.-Não dá, você tem que tomar três dias de antibiótico antes.


Martha chora. Odeia a anestesia, odeia ver seu sangue refletido nos óculos de grau do dentista. Ele chama a assistente.

Dr.-Essa é a Beatriz, vai me ajudar a segurar sua bochecha durante a cirurgia.

-Minha bochecha? tá...

Dr.-Beatriz, cuidado que ela do tipo que descompensa durante o procedimento.

-Descompensa, eu? Dr., o senhor já me arrancou quatros dentes do ciso, quatro pré-molares e até um canal a gente já fez juntos. Quando é que eu descompensei?

Dr.-Eu quis dizer teatro. É teatro que ela faz.

sábado, 31 de julho de 2010

S.P

Arrasto a mala azul turquesa pela rua puta da vida com o taxi que não veio. Nunca mais chamo naquele ponto. Vejo um outro na esquina, aceno, entro. Explico o endereço, falo da pressa e ele sugere cortar caminho pelo elevado. Depois lembra que a essa hora o elevado ainda não abriu. Ele pega um rua errada, me olha no retrovisor. Perde dois faróis, entra na contramão, ruboriza, faz a volta com o carro. A certa altura do trajeto ele me diz:

"Desculpa moça, mas tá difícil, essa sua vibração negativa tá atrapalhando meu trabalho."

"Oi?"

"Você tá muito ansiosa, eu sou sensível. Assim não consigo dirigir."

"Ah..."

Sigo silenciosa no banco de trás. Polida, felizmente.

Ele me cobra dois reais a menos na corrida, gentileza que aceito sem cerimônia.

"Tem muita gente ansiosa em São Paulo moço."

E desco do carro atrasada.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

memória

A gente morava num apartamentinho estreito na Place d’ Italie. Segundo minha irmã mais velha, vivíamos espremidos como sardinha em lata, item, aliás, bastante consumido pela nossa família, já que dividíamos em cinco a igualmente estreita bolsa de estudos do meu pai. Era o ano de 1982 e ele estudava medicina em Paris, no instituto Pasteur. Ano de copa. Eu tinha dois anos, lembro de nada, mas minha mãe conta que estava mais preocupada com os hóspedes que chegariam em breve do que com futebol. Eu morava no andar de cima do beliche e não consigo imaginar como foi que ela conseguiu entulhar tantas pessoas em tão poucos metros quadrados. Só lembro de ficar ao pé do fogão esperando por fatias de berinjela frita, “aubergine!, eu gritava para a Marlene, a babá e empregada que tinha vindo do Brasil conosco.

Na copa de 1986 já tínhamos voltado para o Brasil, morávamos acampados na casa da minha avó Dorina e apesar de pequena, tenho a memória viva do sentimento estranho que tomou conta da casa quando o Brasil foi eliminado. Adultos frustrados, a derrota, camisas azuis claras. Eu ainda misturava o francês com o português, sofria, não gostava da escola, não gostava de dividir o quarto, passava horas olhando para um quadro pintado a óleo, uma ruazinha com casas velhas, atrás uma montanha.
A terceira copa da minha vida foi em 1990, em casa. Tínhamos definitivamente parado de morar na casa dos outros, e quando eu finalmente ia ter um quarto só meu, minha mãe engravidou de novo. Minha irmã caçula nasceu com um olhão azul, vindo lá da minha avó materna, acerto de loteria genética. Nasceu fraquinha, com um quilo e oitocentos gramas. Eu lavava as mãos, toda vez que queria segurá-la no colo. No quintal uma roitweiller chamada Lady Godiva, linda, corria o tempo todo. Eu já tinha comungado pela primeira vez e usava um aparelho horroroso nos dentes, do tipo freio de cavalo. Continuava sofrendo com a escola e com o movimento bandeirante, do qual fui forçada a participar. Eu tinha muita coisa com que lidar, nem lembro da copa. Só da viagem que fizemos para a Itália, assim que os jogos acabaram. Antes de se casar com meu pai, minha mãe foi casada com um italiano. Ele morreu e ela voltou viúva para o Brasil, com minha irmã mais velha no colo. Todo ano minha mãe a levava para visitar a bisavó na Calábria. Neste ano fui junto e dancei a lambada para os italianos. “Chorando se foi, quem um dia só me fez chorar” tocava em todos os lugares do mundo. Eu me apaixonei pelo sorvete italiano, “frágola!” e odiei as praias de pedra.

Foi em 1994 que eu finalmente virei uma brasileira, com quatorze anos e fascinada com a copa do mundo. Participava da conversa dos adultos, perguntava o que era impedimento, pênalti, tiro de meta, e o por que da copa não ser no Brasil. Lembro bem do bolão da família, dos chutes quilométricos do Branco e do pênalti do Baggio, por quem minha irmã era absolutamente apaixonada. Ela tinha um pôster dele no quarto, dele e do Tom Cruise. A gente assistiu a copa na fazenda e eu não perdi um jogo. Uma alegria indescritível tomou conta daquelas férias quando o Brasil ganhou, uma coisa tão maior do que tudo que eu já conhecia, que não sabia ao certo como fazer parte daquilo. As pessoas ficaram felizes por dias. Na tarde que fomos campeões, lembro que peguei um livro do Simenon na estante da sala para ler: “Ainda existem aveleiras”. Era um livro melancólico. Eu lia e ficava triste. Depois lembrava da copa, ficava feliz. Na verdade não entendia bem a história, era muito nova, mas li até o fim, com medo de desapontar meu avô, que lia no sofá ao lado.
Alguns anos depois meus pais se separaram, e como o escritório dele ficou livre, eu finalmente ganhei um quarto só para mim. Mas agora a casa estava triste. E vazia. A Godiva teve que ser sacrificada, um dia de manhã, antes de uma prova difícil de matemática. Eu estudava numa escola forte, a noite fazia o curso profissionalizante de teatro no Célia-Helena. Em 1998 fui para a França, sozinha, e fiquei hospedada na casa de um grego, Kostas, grande amigo do meu pai dos tempos do Instituto Pasteur. O jogo da final assisti com a Julia e Felipe, amigos do colégio que acabei encontrando por lá. Fomos num café, bem parisiense, com muitos parisienses, e a bandeira do Brasil nas costas. O Brasil perdeu. As convulsões. Franceses nos cercando na cabine telefônica que eu tinha entrado para ligar para São Paulo. O metrô quebrou e tivemos que descer na Champs Elysées, no meio de um oceano de patriotas que gritavam e cantavam a marselhesa como se tivessem vencido alguma guerra. Minha bandeira verde amarelo nas costas era uma espécie de Moisés que abria espaço em meio ao mar azul francês campeão. Não havia taxi, nem escapatória. Não conseguíamos chegar em casa, nunca mais chegaríamos em casa. Um desespero. Sentamos desolados na calçada, e ainda com a bandeira nas costas, chorei. E no ápice do pior momento da noite, estaciona a nossa frente um carro velho, amontoado de portugueses, que com seu sotaque típico, assim gritaram para nós: “Brasil, amigo, Portugal está contigo! Brasil, amigo, Portugal está contigo!” Cantaram esses versinhos infames durante alguns minutos e partiram. Nós acabamos conseguindo carona com dois tunisianos e dois dias depois, cansada das piadas que os franceses não perdiam a oportunidade de fazer, peguei um ônibus para Praga.

É o ano de 2002 e eu estou formada em teatro e cinema. Trabalho. Saio da casa da minha mãe, passo uns tempos na casa do meu pai. A copa deste ano foi um grande pretexto para as baladas. Emendava as noitadas com os jogos matinais. Quando o Brasil foi pentacampeão lembro, se é que lembro mesmo, de passar três noites em claro, a base de trigo e cevada. Ia de um canto ao outro da cidade, ziguezagueava pelos botecos e casas de amigos. A impressão de que aquela comemoração não acabaria, de que as pessoas nunca mais sairiam das ruas e de que eu não chegaria mais em casa. Depois passei dias afônicos, muda, exausta. A copa da ressaca.

Um dia recebo o telefonema do meu pai, contando que tinha conseguido ingressos, que ia levar toda a familia para assistir a copa na Alemanha. Era 2006, eu estava em cartaz e não podia ir. A família toda foi na frente e eu passei o começo da copa assistindo os jogos na rua Maceió, apartamento que dividia com uma amiga, enquanto todos eles assistiam os jogos in loco. Minha passagem para Munique ficou marcada para o dia seguinte depois da última apresentação de “Chapa Quente”. Acontece que o Brasil perdeu antes que eu pudesse chegar lá, e eu, consegui a façanha de me apaixonar por um moço numa festa, na véspera da viagem. Cheguei na Alemanha, não vi nenhum mísero jogo e passei a viagem toda comendo schnitzel em família e pensando no moço. Na época pareceu um desperdício, embora hoje seja uma boa lembrança. Percorremos a Alemanha de carro, por estradas inteiras margeadas pelos moinhos de vento. Foi a primeira vez que vi um GPS, e nunca poderia imaginar que hoje, embora eu não saiba usá-lo, existe um modelo disponível no meu celular.

Estamos em 2010. O Brasil foi eliminado da copa. Tenho dois fios de cabelo branco que não ouso arrancar, porque tenho certeza de que eles nascem em dobro. Moro com um gato preto, um namorado e pago muitos impostos. Já não tenho mais um quarto só para mim, mas é por um bom motivo. Enquanto o Brasil durou, a copa roubou parte do público da minha peça e atrapalhou todos os meus compromissos. Ao vivo, num programa de televisão feminino, a apresentadora pergunta para quem eu estou torcendo agora. Respondo que para a Argentina. Todos os câmeras e microfonistas do estúdio voltam-se para mim. A apresentadora sorri amarelo. “Jura?”, É verdade", replico.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

casa camarim

o teatro: um negócio que você constrói, sempre do zero, do solo. Ergue as paredes, passa os fios, coloca as tomadas.Quando a casa fica pronta, você entra e sai dela, milhares de vezes, até dominar, ou achar que domina, cada pedaço do trajeto. Dentro da casa uma familia, os barulhos, cheiros, a torneira quebrada, coisas com as quais você se habitua por gosto ou osmose. Um dia você estaciona seu carro, maquia, dá um gole no café, ouve atentamente o trecho inicial da trilha, pensa que deve pedir para alguém gravar um cd, entra em cena, faz a peça. Sai de cena. Na platéia uma moça, parecida comigo, me avisa que é o último dia de peça, pelo menos desta temporada. Que depois de tudo, da casa erguida, da maquiagem limpa, dos varais estendidos, o espetáculo acaba. Como todos os outros. "Já?", pergunto. Ela mostra os dentes, ri. Se abaixa para buscar um batom que rolou por baixo das cadeiras. "Você nunca vai se acostumar?".

Nunca.

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Caco. Muito obrigada. Fê... Chris, Cynthia, Mari, parceiras, amigas de cena e coxia, meninas e meninos, Simone, Ofélia, Rey, Ju, Fabi, Guilherme, Carca, Arara, Fred, Erika, a todos, muito obrigada, a cada um de vocês. Sei que voltaremos em breve, com essa e com outras! Valeu.



quarta-feira, 30 de junho de 2010

mudar

Só quando se muda, é que se percebe a quantidade de livros inúteis que ocupam lugar na estante. Só quando se muda é que se dá conta do peso de um livro, de um garfo, dos vasos. E é quando se muda que é possível notar a quantidade de pó que vive entre as coisas. As coisas. Quando se começa a colocar sua vida em caixotes, é que fica claro o número de coisas, peças, objetos que acumulamos. E como é difícil jogá-los fora! Uma pequena anta de cerâmica, uma baianinha com a saia quebrada, a pasta de papéis de carta da adolescência. E ao desmontar num dia, o que você organizou nos últimos anos, é que fica nítida a presença de uma lógica particular e absurda na forma como se guarda as coisas. Como uma gaveta de chaves perdidas que eu encontrei embaixo da cômoda, chaves e mais chaves que eu não consigo jogar fora, por pensar que em algum momento da vida, alguém vai me ligar e dizer: " Sabe aquela chave que eu pedi para você guardar? Então, preciso dela agora." Aliás, é quando se muda e se digladia com as coisas que você carrega e com a dificuldade de se lembrar ao certo de como e por que aquelas coisas vieram parar na sua casa, é que você entende que os espaços do cérebro dedicados a guardar lembranças são curtos e preciosos. Embora infinitamente maiores do que qualquer casa que possamos vir a morar. E é quando se muda, e mais, se reforma o lugar no qual você pretende morar, é que "metros quadrados", um taco original, a diferença entre o mármore importado e o granito nacional, um sifão, enfim, essas questões passam a fazer parte do seu vocabulário e interesse. Sem contar o olhar clínico que adquirimos e podemos usar cada vez que entramos na casa de alguém. Qualquer lugar do mundo, que tenha um teto e quatro paredes, é um lugar perfeito para se utilizar o conhecimento adquirido: se o local está bem acabado, se o azulejo é pintado, quanto custou aquela pia de pedra, se as lâmpadas em questão são de 20 ou 60 volts. É possível até calcular o orçamento da reforma ou construção. E é por estar com a cabeça tomada por tantas coisas cruciais, é que não se tem tempo de parar, postar, comer coisas mais nutritivas que nuggets em tapewares e tirar o resto de esmalte lilás que está na unha há vinte e sete dias.

domingo, 13 de junho de 2010

perucas

Numa manhã mal dormida, não lembro se pela ressaca ou pelos miados insistentes no vão da porta, saí em busca da moldura perfeita para minha personagem. Segue abaixo as tentativas, exceto a escolhida. Esta vocês terão de ir ao teatro para conferir.



esta sou eu, de cabelo molhado, com um chope turvo na mão


acaju, fora de moda


preto básico


que passa desapercebida


nojenta


decadence avec elegance


tentativa mal aparada de moderninha


adolescente que se acha


adolescente sem turma


argentina?


sinhá moça